A Sede entre os Limites By Ulla Hahn


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O amor não é um anjinho com asas
nem Cupido roliço a atirar dardos
o amor é um anjo de entre muitos
que a ira de Deus baniu dos céus estrelados

quando como Ele quis ser esse amor: belo
cruel e cego e todo poderoso não
deste mundo desde então ele mostra
o semblante em constante mutação

do anjo exterminador que faz dançar
ao som do chicote os corações até
que para abater os fracos e caídos
sobre o pescoço lhes assenta o pé

e aí fica girando no tacão
para lá para cá sem pressas com rigor
Um ou outro lá conseguem escapar
e a senha é: Já te não tenho amor.



(Max Ernst, The Fireside Angel, 1937) Paperback LONGE E ACABADO
Não tenho medo de sofás vazios
ficam na sala da minha lembrança
como adereços de uma vida acabada
Desde que te esqueci revive a esperança

Agora tenho outro à porta em certos dias
Deixo-o entrar levo-o para a minha cama
e passo-lhe a mão pelos cabelos
como tu me fazias

Gosto de ti como de um quadro de um poema
que o tempo torna nossos pessoais
Fazes parte de mim e tudo o mais
já está esquecido. Longe e acabado como tu.


Tão estimulante e clarividente como a poesia da alemã Ulla Hahn é aquilo que ela tem a dizer sobre a sua criação, tanto em prosa...

“Alguém escreve um poema e centenas de milhares podem recebê-lo. Cada um o seu. Cada um come, lê, sozinho. Cada um à sua maneira. O poema só alimenta se for o nosso poema. Todo o poema é uma resposta. Mas: não há resposta sem pergunta. Quem pergunta o quê? Cada um pergunta o que lhe convém. Um poema não é uma receita.
(...)
Os poemas devem ter um efeito lento. Provocar uma intoxicação crónica. De conhecimentos sobre nós próprios. Isto é perigoso. O veneno fica no corpo, o conhecimento na cabeça. E isso nem sempre é agradável. Vivemos melhor se formos ingénuos. Mas: o veneno certo, nas doses certas, fortalece. Os poemas são drogas em que não nos perdemos. Encontramo-nos cada vez mais. Os poemas levam-nos a um auto-interrogatório, descobrem o que nós gostaríamos de encobrir.”

...como em verso.

PRE-SCRITA
Esta saudade
de te chamar pelo nome
Este receio
de te chamar pelo nome

Esta saudade
de manter a palavra
Este receio
de apenas manter a palavra

Esta saudade de uma vida
que não dê em poema
Este receio de um poema
que antecipe uma vida.


Os meus poemas preferidos de “A Sede Entre os Limites” são os que falam de amor ou do seu fim, que está sempre implícito, sublimando o desgosto através da escrita...

PASSADO A LIMPO
Foi-se a esperança
de que pudesse ser minha outra coisa
além da secretária em que
a vida se transforma em papel

Assim discretamente a mão faz
perder tudo o que é real
Inscrevo, desescrevo, circunscrevo-
-te até seres só pó de escrita.


...e também da natureza.

CHEGA E SOBRA
Se ainda o amasse não
veria como a luz
reverba nos lagos
Não veria a manhã
desvanecer-se no meio-dia
manhã dos braços da noite
ressurgida
Não veria as flores
romper e verde
nos prados a erva
florir fenecer
Não veria as andorinhas no seu voo alto que só ele
me chegava e sobrava
Paperback Da fossa dos teus anos te tirei do lameiro
e mergulhei-te nas águas do meu Verão
lambi-te mãos cabelos corpo inteiro
jurei ser minha e tua até mais não.

Tu deste-me a volta. Gravaste a fogo brando
a tua marca na minha pele fina.
Renunciei a mim. E eis senão quando
me começo a afastar da minha sina

e de mim própria. A princípio ainda a recordação
um belo resto chamando por mim.
Mas nessa altura estava já dentro de ti
de mi escondida. Bem me escondeste então.

Perdi-me toda em ti, de mim nem cheiro:
e então cuspiste-me de corpo inteiro.

***

A terra está fechada
Nua de maravilhas
Cai neve nas igrejas
Em silêncio nós
Entrançamos o cabelo dos mortos.

***

Acho interessante que a autora não se reveja na avalancha de literatura confessional (ou melhor, que não a aprecie particularmente), quando é precisamente o enquadramento que faria dela. Uma literatura centrada num Eu que se pensa e que sobre si se debruça, que se questiona, que se expõe, que se abre ao mundo em tom de exposição/confissão. Mas, no fundo, os autores não têm de se identificar com as colagens temáticas que os leitores fazem...

Li este livro pela primeira vez em casa de uma amiga (e não o registei aqui na altura), no Verão de 2020. Na altura fui seduzida pelo primeiro poema que citei, e constato que foi um dos poemas que mais me impressionou nesta segunda leitura: por vezes paro para pensar na questão da coerência interna e do gosto. Somos, de facto, mutáveis a tantos níveis, podemos reler um livro, um poema, e fazer dele uma análise completamente diferente em função da altura em que o lemos (considerando a idade, considerando o que se passa na nossa vida)... mas confesso que há algo que me sossega em perceber que, em certos casos, a beleza e o impacto de algo parece imutável - passem-se anos, décadas, há livros e poemas (e filmes, e músicas, e pinturas, etc.) que me agitam da mesma forma... e é por isso, talvez, que olho para eles como se fossem pilares, algo que está em mim e no qual posso confiar.








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A Sede entre os Limites

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